Nossa história
Gruta: uma história de amor
O livro “Escrevendo a história de nossos antepassados” é o ponto de partida deste registro sobre a família que está há gerações à frente da Estância da Gruta. Impresso em Pelotas em abril de 2010, é fruto da pesquisa e da escrita de Antonia Berchon. Responsável pela quinta geração de administradores das terras do Pavão, no Sul gaúcho, a matriarca fornece detalhes e memórias perpassando a genealogia desde os bisavós, Edmond J. Berchon des Essarts e Amélie Roux pelo lado paterno, e Antônio José Gonçalves Chaves e Marcolina (Catita), do lado materno.
Foram a partir dos escritos de Fanny, filha de Amélie e Edmond, enviadas aos parentes na França e da investigação sobre de que forma o patriarca, de ilustre família francesa, foi parar no Rio Grande do Sul que se inicia o resgate da história da família Berchon des Essarts. “Lendo cartas, pesquisando, penso que foi por intermédio de Henrique de Beaupère Rouen (mais tarde, padrinho de meu avô Edmundo)”, escreve Antonia. Edmond deixou Paris, onde era negociante e político, e se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde frequentou a corte e fez boas relações. “Berchon era alto e elegante. Pelas cartas, vê-se que era romântico e que escrevia muito bem. Foi então aceito seu pedido de casamento com Amélie. Casaram-se em 1856”. Amélie passa a viver em São Gabriel e o marido no Paraguai. O casal teve quatro filhos: Amelie Edmunda Eleonor, Fanny, Cecília e Edmundo.
“Nossos bisavós (Edmond e Amélie) muito sofreram durante os anos da guerra. Separados, com muita falta de comunicação”, escreve. No Paraguai, Elisa Linch esposa de Francisco Solano Lopes, filho do governante paraguaio Dom Carlos Antônio Lopes, confiou seus documentos a Edmond Berchon des Essarts, incluindo terras, estância em Corrientes e o testamento. A fidelidade de Edmond Berchon foi demonstrada quando a família Lopes tentou obter os documentos que comprovavam o direito de Elisa Linch aos bens. Berchon recusou-se a entregá-los e, em consequência, foi assassinado, em 1872. Sua recusa em entregar os documentos salvou Elisa da miséria, e os papéis foram remetidos à representação francesa em Buenos Aires, garantindo uma pequena fortuna para ela e seus filhos.
Amélie vai para Pelotas
Viúva, Amélie se muda para Pelotas, onde deu aulas de francês e piano para sustentar a família. “Correram os anos, as meninas, já moças, casaram. A mais velha, Amelia, com Eduardo Gastal, dentista; Fanny com Jean Perez, comerciante, que tinha loja chic na rua Quinze esquina Sete de Setembro. Cecília, com 14 anos, foi pedida em casamento por Gabriel Gastal, o que se realizou 30 anos mais tarde. Berchon (Edmundo) foi para o melhor colégio da cidade, do professor Carlos André Laquintinie, onde estudavam também os meninos Chaves: Álvaro, Bruno e José; assim ficaram muitos amigos”, descreve Antonia.
Dr. Berchon des Essarts
Na juventude, Edmundo Berchon e seus amigos pelotenses, Álvaro, Bruno e José, alugaram uma casa no morro da Glória (RJ), onde estudaram na faculdade. Berchon se formou em Medicina na Bahia, em 1887. Neste mesmo ano, morreu em Paris Jean Baptista Roux e sua mãe, Amélie, viaja para a França e faz o inventário. Na medicina, começaram a ser difundidas as técnicas de esterilização, assepsia e as vacinas. Berchon, que teve a oportunidade de trabalhar nas melhores clínicas e hospitais, incorporou as inovações. “Tudo fervido, tudo esterilizado, ninguém mais morria nas cirurgias na Santa Casa”, escreve, ao lembrar que o avô atuou na linha de frente na epidemia de varíola no Rio Grande do Sul. Berchon abriu consultório em Pelotas e ganhou reputação como cirurgião. Enquanto isso, iniciou um namoro com Antonia Chaves, com quem se casou em 1883. O casal viajou várias vezes para Paris e Roma, onde o médico representou o Brasil em diversos congressos.
Os Chaves
A parte materna da família descende de Antônio José Gonçalves Chaves. De origem portuguesa, chegou ao Brasil em 1806. Tinha uma charqueada às margens do Rio Pelotas, onde chegou a receber o botânico francês August de Saint-Hilaire, em 1820. No início da Revolução Farroupilha, em 1835, mudou-se para Montevidéu. Viveu por lá até o fim da vida, morrendo afogado no dia 28/10/1844, deixando 13 filhos.
Em 1777, os campos onde está a Estância da Gruta foram concedidos ao sargento-mor Roiz. Localizada entre os rios Contrabandista e Piratini, a área foi dividida entre os seus herdeiros. “O genro mais conhecido foi Domingos de Castro Antiqueira, Visconde de Jaguary. Nasceu em Viamão em 1763. Casou três vezes; os seis filhos que teve foram do segundo casamento, com Maria Joaquina de Castro, nascida na cidade do Rio Grande. Dois deles, José de Castro e Antônio, constam como proprietários de terras, no mapa antigo. Também mais na direção leste, para o Pavão, dona Clara Joaquina (3ª filha), casada com Soares de Paiva, construiu a casa da sua estância, que hoje chamamos Estância da Gruta”, relembra, ao destacar a morte precoce de Vicentinho, filho de Maria, a última herdeira dos campos extinguindo a descendência de Domingos Antiquera.
O Sobrado
O sobrado da família Chaves em Pelotas, construído por Antônio José Gonçalves Chaves, teve sua planta encomendada na França, mas apenas metade dele foi construído. “O terreno era enorme, ia até onde hoje é a rua Barroso. Precisavam de espaço para as cocheiras, os cavalos dos carros, para a quinta de frutas e assim foi planejado”, escreve. Ele casou-se com Marcolina (Catita), que era sua sobrinha. “Antonia (filha do casal) já era mocinha, já deveria namorar o amigo dos rapazes, o Berchon”, comenta.
Dos cinco filhos, Álvaro morreu com 27 anos, era governador do Paraná. José, formado em engenharia, também morreu cedo. “Catita viu morrer todos os filhos; só lhe ficou Bruno e Guido, que não quis se casar, foi ser estancieiro no Posto do Confisco, última parte da Estância de Piratini. Depois da morte de Álvaro e a de Antonia, ainda veio a gripe espanhola, que levou meus pais (Vera des Essarts e Jaime de Carvalho). Eu ainda era bebê, vovó Catita tinha mais de oitenta anos, mas nunca se deixou alquebrar. Foi a mulher do tio Bruno, a Casemira, quem me criou, e Rosa foi minha mãe preta”, relata. Antonia nasceu em 28/02/1918, na Estância Santo Antônio, atual município de Capão do Leão. Era neste local onde passava os veraneios com seu avô Berchon.
As terras do Pavão
Os Chaves, liderados por Antônio José e seu irmão José Maria, adquiriram grande parte da sesmaria de Roiz onde ergueram a Estância do Piratini. A construção da Estância da Gruta, por Clara Joaquina, filha de Domingos de Castro Antiqueira, e seu marido, Soares de Paiva, ocorreu por volta de 1853, quando o nome era Estância do Capão Florido. “Os Paivas eram cultos e viajados, passavam temporadas em Paris. Dona Clara Joaquina, mulher de bom gosto, levou todo o material embarcado pelos rios São Gonçalo e Contrabandista. Portas, armários, bandeirolas de vidros de cor, que vinham de Veneza, tudo chegava pelo arroio, bem ao lado da casa”.
Em meados do século XIX, Vera Berchon herdou a Estância do Capão Florido aos 12 anos. Em homenagem à beleza das águas que havia visto durante uma viagem à Itália, rebatizou a propriedade de “Gruta Azul”. “O nome Capão Florido ficou num potreiro de lembrança”, escreve Antonia.
Meu pai
Antonia descreve seu pai, Jaime Miranda de Carvalho, como uma figura alegre, carismática e cheia de amigos. Era filho mais velho de Marucas (Maria Maria Emiliana de Miranda), neta do Comendador João de Miranda, casada com João Lopes de Carvalho. Jaime foi trabalhar na Santa Casa de Pelotas, onde Dr. Edmundo Berchon era cirurgião chefe. “Acontece que tinha ele (Berchon) uma filha mocinha, de luto pela mãe, bonita e encantadora. Não demorou muito o casamento de Jaime Miranda de Carvalho com Vera Chaves des Essarts, a terceira na sucessão da Estância da Gruta. Viveram felizes juntos por poucos anos. Em 1918, veio a grande guerra na Europa que trouxe a terrível “Gripe Espanhola”. Todos na casa adoeceram; minha mãe, eu bebê e meu pai, tão bom que era, atendia como médico, em exaustão, até que pegou a doença que o levou. Só sobrei eu, bebê”, relembra.
O Sonho
Antonia relembra que, com o falecimento de seus pais, ficou como a quinta proprietária da Estância da Gruta. Seu avô raramente ia até lá. Ela conta que, durante sua infância, a família costumava passar as férias em Santo Antônio e chegava até a Gruta atravessando os campos. “A revolução de 1923 foi brava! Levaram da estância muito gado e cavalhada”.
Foi aos dezoito anos, morando no Rio de Janeiro, que Antonia pediu permissão ao seu avô para voltar e arrumar a casa da Gruta. Junto com a amiga Léa Affonsêca, retornou para o Sul para organizar a sede. “Titio Edmundo (filho do Dr. Berchon) fazia tudo o que pedíamos, mas mandou pintar de branco com as janelas de um azul tão escuro, que parecia o cemitério de Pelotas”, descreve. Entre os desafios: se livrar dos milhares de morcegos e das goteiras. “Em pouco tempo, e uma máquina de costura, surgiram as cortinas. As da sala de visita, cor de girassol com barra branca, e as da sala de jantar, de um chinz cor de goiabada com babado, eram encantadoras! Tudo foi reposto, tudo foi limpo. (…) O segundo tempo foi preparar um campo de aviação. A planície atrás da casa facilitou. Não esperamos muito e escutamos aquele ronco maravilhoso, “aquele senhor” pousou devagarinho, suave como só ele sabia pousar”, relata.
“Aquele Senhor”
Nessa época, os irmãos gêmeos, Paulo e Luiz Raphael de Oliveira Sampaio, conhecido como Lulu, desceram de avião na Gruta. Nascidos na Inglaterra, eram filhos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, entre 1920 e 1922, Carlos Sampaio. O ano era 1942 e a estada na estância foi planejada com antecedência, lembra Antonia que, mais tarde, casou-se com Lulu em Saquarema (RJ). “Lulu foi grande piloto, mas nunca fez alarde de seus feitos; tinha a qualidade de ser modesto. Ganhou todas as condecorações que havia na Marinha e na Aeronáutica. Gostava de desafiar os perigos. Trabalhou com os irmãos Vilas-Boas, procurando lugares de pouso e dando-lhes o rumo. Assim foram abertos os campos no norte”. Eles estabeleceram o hábito de combinarem a hora exata dos reencontros, num tempo em que não havia telefone. Confiante na pontualidade de Lulu, ela costumava se arrumar e esperá-lo no hangar da aeronáutica. “No dia em que não chegou, já não vivia mais, para cumprir seu encontro marcado”, lamenta. Lulu faleceu em 1966.
Do casamento, nasceram três filhas: Rosa May, Maria Rita e Anna Luiza que está à frente da Estância da Gruta. Formada em agronomia, é mãe de Antônio José, o sétimo administrador da área, e de Catarina. Também são netos de Antonia e Lulu, Luiz Raphael, Guilhermina, Charlie, Pedro, Felipe, Antonia e Caio. A matriarca faleceu em 05/10/2014, aos 96 anos, de causas naturais.
Meu avô
“Dr. Edmond Berchon des Essarts foi um grande homem”, registra Antonia Berchon. Além de ser um renomado cirurgião, se destacou pelo engajamento na educação e na economia. Pioneiro, trouxe a primeira autoclave e fez funcionar o primeiro aparelho de raio-x no Brasil. “Assis Brasil foi muito amigo de meu sogro Carlos Sampaio e de meu avô Berchon. Por isso, criamos gado Devon. Pois Assis, além de ser amigo do príncipe de Gales e dele ter ganho alguns animais, dizia que nosso Rio Grande se parecia muito com o Condado de Devonshine na Inglaterra”, revela. Em 1911, Berchon trouxe ao Estado o especialista em cultura de arroz, diretor da Escola Experimental de Agricultura da Itália, Dr. Novelo Noveli. “Dr Berchon era de uma generosidade incrível e tinha muito amor a esta terra”, escreve. Ele instituiu prêmios para os melhores médicos formados em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. “Vovô não se pertencia. Auxiliava a todos quantos os que necessitassem de amparo, desde o artista, o médico, o advogado, o jornalista, até o mendigo”.
Ele faleceu em Pelotas, no dia 14/03 de 1942. Seu enterro foi marcado por uma cerimônia comovente. “Durante toda a noite grupos o velaram. O primeiro os do Asilos de Mendigos, o segundo, ao amanhecer, das meninas órfãs, mais tarde, além de outros asilos e colégios, todos os enfermeiros. Coube aos médicos descerem o esquife pelas escadas até o carro que o levou ao cemitério”.